quarta-feira, 23 de julho de 2008

Bataman Gay e Algumas questões sobre o A Dominação Masculina

Fui ontem assistir ao novo Bantman. Gostei e não vou comentar muito do filme para não ser estraga-prazer: “o mocinho morre no final, o mocinho morre no final, o mocinho morre no final!”. E o mocinho não é Batman, entendem?

Na verdade ter visto “O Cavaleiro das Trevas” é mais um pretexto para falar outra coisa: o tratamento analítico de política dos movimentos de homossexuais. Um tema que é de difícil abordagem, entendam! Mas não seria nada ruim usar Batman como ensejo, uma vez que a personagem central do filme vive a maior das antinomias experimentada pelos movimentos gay e lésbico: o dilema da visibilidade e o da invisibilidade no espaço público. O que é uma ótima dica de leitura do filme, não acham?

Bem, como diria Paulo Honório. Continuemos.

Eu concordo e não é de hoje com a seguinte afirmativa: “o movimento gay e lésbico põe ao mesmo tempo tacitamente, pela existência de suas ações simbólicas, e explicitamente, pelos discursos e as teorias que ele produz ou os quais ele dá vazão, certo número de questões que estão entre as mais importantes das ciências sociais e, algumas delas, são realmente novas.” (Bourdieu, 1998, anexo).*

Mas antes de concordar com tal afirmativa eu já tinha essa intuição. No ano em que entrei na universidade (1998) terminei sendo motivo de brincadeiras de amigos por ter defendido a idéia segundo a qual o “homossexualismo era um assunto importante para a sociologia”.

Dessa forma esse tema me parece ser dos mais importantes não apenas pela dificuldade específica de tratar de categorias que “definem” ou “se definem” a partir de critérios tão difíceis de “fixar” como “gays” ou “lésbicas”, mas também pela dinâmica mesma de ter que enfrentar, socialmente, enquanto homem e hetero que sou, os medos e receios que a própria sociedade criou para mim e que eu assimilei e reproduzo de varias maneiras.

Resumo na pergunta que faz Bourdieu em seu texto sobre o assunto o que existe de difícil na abordagem sociológica de classificação e categorização dos movimentos gay e lésbico: “se deve tomar como critério as práticas sexuais – mas quais, as declaradas ou as escondidas, efetivas ou potenciais, a freqüência em certos lugares, um certo estilo de vida?” (Ibid,1998, anexo). Vejam que essa dificuldade especifica não existe de maneira tão evidente quando se fala de feminismo porque a “feminilidade” se caracteriza aquém e além das práticas sexuais.

A própria dificuldade de abordar o tema com as ferramentas usuais da sociologia, por si só, já traria um largo leque de possibilidades heurísticas do ponto de vista da produção do conhecimento sobre o social. Mas apesar de todo esse campo de possibilidades novas, eu gostaria de me ater aqui a algo que antecede esses problemas no livro supracitado: o ponto de vista de Bourdieu sobre o feminismo porque, por desconhecimento ou má vontade, ou mesmo por exagero feminista, sua reflexão sobre o assunto, que é tributária de seu trabalho mais extensivo sobre outros domínios do mundo social, foi julgada como uma visão meramente “masculinista” tirando a atenção do essencial em sua argumentação.
Contexto de minha opinião

Tive a oportunidade de durante o meu doutorado participar de alguns seminários de aula com Betânia Ávila do SOS Corpo. Nas poucas e boas conversas que tive com ela pude falar da perspectiva analítica a qual Bourdieu encarnava. Naquele momento de sua vida, que é o momento em que ele escreve o La domination Masculine, cujo anexo elabora algumas reflexões sobre o movimento gay e lésbico as quais me referi, ele está admitindo uma postura política mais forte e mais “engajada” do que a que ele admitia para si em épocas remotas de sua produção acadêmica (ler a esse respeito o artigo de Jean-Claude Passeron “ Mort d um ami disparition d um penseur” que foi publicado em português no livro Trabalhar com Bourdieu). Nessa visão tardia de Bourdieu de ciência não se pode perder de vista, no meu entender, aquilo que o sociólogo entendia como função da sociologia crítica, que é derivada da reflexividade específica de uma sociologia dos condicionamentos sociais e de daquilo que ela pode produzir.

Explico-me. Uma das críticas que mais ouço a respeito do A Dominação Masculina é que o autor não fala em seu livro das mulheres, mas, como diz o título do livro, da dominação masculina, ou seja, do homem. Ora, por má fé ou preciosismo de linguagem, não se percebe com esse tipo de crítica algo essencial na postura crítica de uma sociologia que visava captar condicionamentos com vista ao entendimento mais preciso do que Bourdieu chamava de efeito de doxa, em bom português: tudo aquilo das lógicas de funcionamento do mundo social que faz que as obrigações e interdições do mundo sejam de alguma maneira respeitadas, fazendo que os atos de subversão e delitos (portanto visados pelas feministas como instrumentos políticos de transformação de um estado de coisas dado) sejam encarados como “exceções”, ou como “loucuras”, “desvarios”.

Como exemplo dessa visão de ciência dele, vou trazer a metáfora que Bourdieu usara para falar dos efeitos que possivelmente ele gostaria de ver a sociologia produzindo, principalmente a dele. Falando do sonho que a especie humana sempre nutriu pela idéia de voar (pensando em Icaro), Bourdieu lembrava que foi estudando a gravidade, ou seja, todos os condicionamentos que fazem o homem(enquanto espécie) se manter colado ao chão, que se abriu a possibilidade para realização desse sonho. Pois bem, Bourdieu tem consciência de que entre o conhecimento dos condicionamentos sociais e a liberdade que esse conhecimento pode ajudar a produzir existe um vasto hiato que só pode ser alcançado por uma atitude política diante do próprio conhecimento e do mundo. Mas concebe que a sociologia deva estudar aquilo que produz a necessidade do feminismo, a gravidade que limita o vôo da mulher, a dominação masculina.

É desse ponto de vista que as qualidades e defeitos do livro deveriam ser tomados, acredito.
Fico aqui com um trecho muito bonito do livro, quase lírico, lírico a seu modo evidentemente, onde Bourdieu fala sobre nada mais nada menos que o amor:

“[...] o corte com a ordem ordinária não se completa de um só golpe e de uma vez por todas. Ele se faz somente por um trabalho de todos os instantes, sempre recomeçado, que talvez arranque das águas frias do calculo, da violência e do interesse “da ilha encantada” do amor, esse mundo fechado e perfeitamente autárquico que é o lugar de uma série continua de milagres: aquele da não-violência, que torna possível a instauração de relações fundadas sobre a plena reciprocidade e autorizando o abandono e a reencontro (remise de soi) de si; aquele do reconhecimento mutuo, que permite, como disse Sartre, de se sentir “justificado de existir”, assumido, até dentro de suas particularidades as mais contingentes ou as mais negativas, dentro e por uma espécie de absolutização arbitrária do arbitrário de um encontro (“porque era ele, porque era eu”); aquele do desinteresse que torna possível as relações desistrumentalizadas, fundadas na felicidade de dar felicidade (bonheur de donner du bonheur), de encontrar dentro do maravilhar-se com o outro, notadamente no emaravilhamento que ele suscita, as razões inesgotáveis para maravilhar-se.” (Bourdieu, 1998, p.117) *

PS: Depois comento o anexo do livro que se chama “Questões Sobre o Movimento Gay e Lésbico” e que acho muito interessante. Sobre o que acontece atualmente em Pindorama sobre o assunto, texto interessante aqui.
*BOUDIEU, Pierre.(1998) La Domination Masculine, Paris, Seuil.

Um comentário:

Anônimo disse...

João,
As críticas dirigidas "A Dominação Masculina" pelas feministas, em minha opinião, estão voltadas, como você mesmo apontou, para uma nova forma de utilização da linguagem na academia. Ouço críticas e as leio em meus trabalhos acerca da linguagem empregada. Bourdieu queria demonstrar cientificamente - pelo que você diz com propriedade de quem estuda e conhece o autor –a relevância da necessidade de contestação das formas de condicionamento do mundo social para que elas sejam transformadas pelo gênero humano. Ele é um autor que faz uso de uma linguagem clássica. O uso do termo ‘homem’ é hoje rechaçado pelas feministas. Não nego que busco me policiar sobre os usos que faço quando vou escrever, mas talvez, coisas mais relevantes nas obras e nas visões do fazer ciência de autores, a exemplo de Lukács, Lênin, do próprio Bourdieu, entre outros, sejam postas em segundo plano por uma forma particular e herdada dos clássicos. O que é axial muitas vezes pode até ficar de fora. E a crítica ao livro a que você se refere seria mais pertinente. Acho que é uma pena, mas não condeno a mudança no uso de novas terminologias, se é assim que posso chamá-las.